segunda-feira, 23 de julho de 2012

Preconceito Racial em Histórias de Tia Nastácia


             A representação do negro na obra de Monteiro Lobato corresponde com a época em que  vivia.  Durante  a  infância  Lobato  presenciou  o  fim  da  escravatura  no  Brasil,  a  Princesa Isabel sancionou a  Lei  Áurea em 13 de maio de 1888, garantindo a liberdade a mais de 700 42 mil escravos no país. Apesar deste feito que traria o progresso a todos os cidadãos brasileiros, alguns  negros  mesmo  com  a  lei  que  os  defendiam,  ainda  trabalhavam  para  seus  antigos patrões, este foi o ponto abordado por Lobato em sua narrativa. 
             De  acordo  com  Penteado  (2011,  p.  191),  realizador  de  estudos  e  pesquisas  sobre  a obra  infantil  de  Monteiro,  na  saga  Sítio  do  Picapau  Amarelo  Lobato  mantém  a  personagem negra  Tia  Nastácia  na  cozinha  do  Sítio  de  Dona Benta,  que  foi  sua  proprietária  na  época  da escravidão, mesmo com a liberdade continuou a trabalhar para Dona Benta. Em Reinações de Narizinho (1920) destaca-se o trecho que fale um pouco sobre a negra: — tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena [...] (p. 02)


               As características físicas de Tia Nastácia são comentadas por Penteado, pois tiveram importância  na  representação  do  negro  na  obra  infantil.  Tia  Nastácia  é  ex-escrava  de  Dona Benta e levou uma vida sofrida por ser analfabeta, sempre estava com um lenço na cabeça e um  avental,  o  que  fazia  de  melhor  era  cozinhar.  Lobato  buscou  representar  sua  personagem negra com verossimilhança ao negro dos anos de pós-abolição. Os pintores que colaboravam para  a  representação  dos  personagens  de  Lobato  caricaturavam  a  negra  com  uma  tintura  de forma grotesca em relação à cor da pele da negra e os lábios grandes. (Cf. PENTEADO, 2011, p. 89)

            Marisa Lajolo, leitora desde criança das obras de Lobato, se torna pesquisadora sobre essas obras. Argumenta sobre a participação da personagem Tia Nastácia na narrativa, a qual está sempre vinculada à cozinha, na obra O Minotauro, ela é sequestrada e levada pela criatura mitológica para que demonstre seus dotes culinários, no desenlace da história Tia Nastácia doma o minotauro com seus bolinhos. Lobato busca relacionar sua personagem com o saber de negra cozinheira, este espaço restrito apenas a cozinha se torna um emblema de seu confinamento e de sua desqualificação social. (LAJOLO, 1998)

            Lajolo (1998) publicou um artigo que discute sobre A figura do negro em Monteiro Lobato em suas obras, na obra Histórias de Tia Nastácia a cozinheira ganha o papel de contadora de histórias, papel até então exercido por Dona Benta, e leva para as crianças o conhecimento que possui sobre o folclore brasileiro. Pedrinho logo se empolga com o significado de folclore e diz: 


Uma ideia que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para tirar o leite do folclore que há nela. [...]
 — As negras velhas — disse Pedrinho — são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se tia Nastácia não é uma segunda tia Esméria? (p. 05-06).

Fonte: Lobato, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. Versão Digital


              De acordo com Penteado (2011) as características de Tia Nastácia tiveram uma pretensão por parte de Lobato, no trecho descrito acima a posição que ele insere sua personagem negra é de contadora de histórias, papel desempenhado nas obras anteriores e posteriores a Dona Benta. Tia Nastácia é conhecedora do folclore brasileiro, então a informação sobre as histórias brasileiras deveria ser repassada pela personagem que é a voz do povo. Seus ouvintes serão os mesmo de Dona Benta, as crianças aprendizes de histórias por meio de uma mentora, Pedrinho, Emília e Narizinho.
              Lajolo (1998) argumenta e destaca outros trechos de Histórias de Tia Nastácia em seu artigo relacionado à figura do negro nas obras de Monteiro, discute sobre os comentários da boneca Emília que formam estereótipos, que segundo Bernd (1988) é uma generalização estabelecida que se mantenha vinculada a respeito de um indivíduo. A linguagem da boneca também é racista, pois ela sente-se superior a Tia Nastácia e a ofende proferindo palavras ofensivas e preconceituosas, pois ela nega as histórias contadas pela negra cozinheira. De acordo com Chochík (2008) o preconceito também está relacionado ao comportamento agressivo com outro que seja sensível, conduta presente nas falas de Emília:

— Pois cá comigo — disse Emília — só aturo essas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. […] — coisa mesmo de negra beiçuda, como tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto... [...] (p. 24).
— Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. [...] (p. 88)


Fonte: Monteiro Lobato, Edição Centenário

             O termo ao qual Emília se refere à Tia Nastácia cria um estereótipo na personagem, sendo este racista, pois a discriminação está relacionada à aparência física da negra, vinculando também ao preconceito racial, fato social do Brasil por volta dos anos de 1930, e se desenvolve com as ideias a respeito da superioridade de um indivíduo em relação ao outro. As características físicas da negra são estereotipadas pela boneca, ao qual se refere a cozinheira como preta e beiçuda.
              A linguagem com palavras ofensivas de Emília as histórias contadas por Tia Nastácia segundo Lajolo (1998) consiste no fato de que a narradora é negra e analfabeta, repassa somente aquilo que sabe por ouvir seus antepassados contarem, não tendo valor no conhecimento cultural dos ouvintes, os quais acham bobagens de negra velha.
              De acordo com Lajolo (1998, p. 04) os xingamentos, através da boneca Emília, demonstram que a negra cozinheira, por mais que mude sua posição na história e passe a ser narradora, não receberá a mesma consideração social e valorativa de sua narrativa, pois seu conhecimento vem do povo e não da cultura escrita, como é munida Dona Benta. Desta forma Tia Nastácia permanece como inferior em relação aos seus ouvintes, discriminada devido sua condição social. Outro ponto analisado por Lajolo (1998, p. 03) na questão dos xingamentos discriminatórios de Emília é de que Lobato escreveu sua narrativa com traços de linguagem verossímeis ao uso coloquial da sociedade brasileira de 1930, com isso surgem ambiguidades em relação ao racismo ou não de Lobato, pois na linguagem de alguns personagens o escritor valoriza o conhecimento da negra: — As negras velhas — disse Pedrinho — são sempre muito sabidas. (p. 05-06)

              A inferioridade social, segundo Lajolo (1998, p. 06) se destaca também através de Dona Benta, ela de certo modo desvaloriza a narrativa de sua doméstica, afirma que a história de Tia Nastácia, a que o povo passa de geração para geração, sofre alterações conforme cada um vai contando, sempre há mudança na oratória. A posição da negra como a oradora de histórias não contribui a nenhuma elevação cultural de seus ouvintes, pois não relata fatos da literatura moderna infantil como Peter Pan e D. Quixote contados por Dona Benta. O seguinte trecho relata a opinião de Dona Benta:

— Você tem razão, Emília — disse dona Benta. — As histórias que andam na boca do povo não são como as escritas. As histórias escritas conservam-se sempre as mesmas, porque a escrita fixa a maneira pela qual o autor a compôs. Mas as histórias que correm na boca do povo vão se adulterando com o tempo. Cada pessoa que conta muda uma coisa ou outra, e por fim elas ficam muito diferentes do que eram no começo. [...]
— Sim, aumenta um ponto e introduz qualquer modificação. Ninguém que ouça uma história é capaz de contá-la para diante sem alteração de alguma coisa, de modo que no fim a história aparece horrivelmente modificada. [...] (p. 18).

              Emília representa no contexto da narrativa o sistema totalitário, pois ela nega a liberdade de ação das histórias contada pela negra, à ideologia da boneca representada por sua linguagem rejeita e não aceita a cultura da cozinheira, ela diz “[...] só aturo essas histórias como estudo de ignorância do povo. Prazer não sinto nenhum [...], desta forma a boneca isola a personagem Tia Nastácia devido o conhecimento que possui, e ainda discrimina com a fala [...] coisa mesmo de negra beiçuda [...] direcionando essa característica para o estereótipo, que generaliza o conhecimento a negra beiçuda
              Logo Dona Benta também assume o papel de mentora dominante justificando a origem dos contos da negra, pois seu conhecimento provém de livros, o que é provado em escrita tudo o que diz, dando veracidade nos fatos de sua história, dando total liberdade de desvalorizar a função atual da negra, “o totalitarismo silencia a voz da experiência, substituindo-a pelo discurso único e absoluto do poder” (CROCHÍK, 2008, p. 38), fazendo com que ela seja inferior a sua patroa Dona Benta. Sendo assim a negra cozinheira e a avó sábia não se igualam em relação ao conhecimento e atribuições. (LAJOLO, 1998, p. 06)
              No trecho a seguir, Dona Benta justifica o motivo pelo qual as histórias de Tia Nastácia são tão distorcidas e tão diferentes das que ela conta:

— Sim — disse Dona Benta. — Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulteradas ainda.[...] (p. 23)

              O papel de mentora atribuído a Tia Nastácia é de relatar os seus conhecimentos em relação a histórias que o povo conta, traz para as crianças do sítio sua herança africana, sua cultura. As desvalorizações de seus conhecimentos estão relacionadas ao fato dos contos não terem origem Europeia, assim como as de Dona Benta descendente de europeus e de raça branca que são originadas de livros, seus serões são de conhecimentos do povo, repassados de geração para geração.
              Seguindo as explicações abordadas por Crochík (org. 2008) os ouvintes de Tia Nastácia são como totalitaristas, pois corrompe a liberdade da fantasia das histórias contadas pela negra, fazendo críticas sobre a origem da narrativa, nega a manifestação da cultura do povo. Surge a partir dos julgamentos destes ouvintes o racismo, pois Tia Nastácia é atingida pela violência totalitária, menospreza o conteúdo de seus serões por ter origem apenas da oralidade, e eleva o valor das histórias contadas por Dona Benta que provem de livros.
              Lobato abordou em sua obra infantil uma realidade aproximada, a verossimilhança da realidade que o negro passava na época do Brasil pós-escravidão, fato que decorreu durante os anos 30. De acordo com os textos de Lajolo, que argumenta sobre a questão de racismo do autor do Sítio do Picapau Amarelo, explicita os pontos destacados como preconceituoso, ele demonstra que o branco sempre teve razão e é superior ao negro, mesmo que esse negro assuma o lugar de informante de conhecimento que irá aumentar a cultura dos ouvintes, sendo evidente que havia superioridade mesmo após o fim da escravidão e libertação de todos os negros, ele assim mesmo seria inferior ao branco. Em alguns momentos pode-se encontrar ambiguidade se há preconceito ou não, mas a realidade de sua obra ficcional é latente que a escravidão deixou resquícios entre raças.

            Essas diferenças são representadas na plateia de Tia Nastácia, ao narrar suas histórias os ouvintes se recusam a acreditarem nelas, e a justificativa é de que as histórias de Dona Benta são mais intrigantes e possuem aventuras, características que prende a atenção das crianças. Constatando que os dotes de Tia Nastácia não estão direcionados a narrar histórias de aculturamento para seu público e sim na cozinha como afirma Lajolo (1998, p. 5):


Mas como Tia Nastácia não é dona Benta, a situação de oralidade que ela protagoniza não aponta para além de si mesma e, sobretudo, não contribui para elevação cultura de seus ouvintes, já que nem os familiarizam com a moderna literatura infantil como Peter Pan e tampouco os aproxima de clássicos como D. Quixote; muito pelo contrário, constitui um rebaixamento cultural, já que é arcaico o mundo que se faz presente em suas histórias.

                   Mesmo que Tia Nastácia exerça a função de Dona Benta, sua narrativa não terá tanta ênfase na ampliação do conhecimento de seus ouvintes, os quais estão acostumados com as histórias infantis lidos e narrados pela avó, demonstra o valor entre uma cultura que repassa o conhecimento através da oralidade e outra que tem por embasamentos escritos aprimorados da história do povo.

                  Da forma que o personagem negro foi abordado nesta narrativa de Lobato a pretensão é intencional, pois ele demonstra o valor que é cedido aos negros brasileiros da época em que vivia e o lugar estereotipado a eles, a negação do totalitarismo que menospreza a mudança de posição desta personagem negra ao desenvolver o ato de contar histórias adquiridas pela oralidade, à discriminação ao trabalho doméstico relacionado ao prestador de serviços aos brancos, e a inferioridade da negra em relação aos demais habitantes do Sítio.


Fonte: 

SANTOS, Yndianara da Silva. Estereótipo racista na obra de Monteiro Lobato? Histórias de Tia Nastácia. Brasília, 2012.








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