A representação do negro na obra de Monteiro Lobato corresponde com a época em que vivia. Durante a infância Lobato presenciou o fim da escravatura no Brasil, a Princesa Isabel sancionou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, garantindo a liberdade a mais de 700 42 mil escravos no país. Apesar deste feito que traria o progresso a todos os cidadãos brasileiros, alguns negros mesmo com a lei que os defendiam, ainda trabalhavam para seus antigos patrões, este foi o ponto abordado por Lobato em sua narrativa.
De acordo com Penteado (2011, p. 191), realizador de estudos e pesquisas sobre a obra infantil de Monteiro, na saga Sítio do Picapau Amarelo Lobato mantém a personagem negra Tia Nastácia na cozinha do Sítio de Dona Benta, que foi sua proprietária na época da escravidão, mesmo com a liberdade continuou a trabalhar para Dona Benta. Em Reinações de Narizinho (1920) destaca-se o trecho que fale um pouco sobre a negra: — tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena [...] (p. 02)
As características físicas de Tia Nastácia são comentadas por Penteado, pois tiveram importância na representação do negro na obra infantil. Tia Nastácia é ex-escrava de Dona Benta e levou uma vida sofrida por ser analfabeta, sempre estava com um lenço na cabeça e um avental, o que fazia de melhor era cozinhar. Lobato buscou representar sua personagem negra com verossimilhança ao negro dos anos de pós-abolição. Os pintores que colaboravam para a representação dos personagens de Lobato caricaturavam a negra com uma tintura de forma grotesca em relação à cor da pele da negra e os lábios grandes. (Cf. PENTEADO, 2011, p. 89)
Marisa Lajolo, leitora desde criança das
obras de Lobato, se torna pesquisadora sobre essas obras. Argumenta sobre a
participação da personagem Tia Nastácia na narrativa, a qual está sempre
vinculada à cozinha, na obra O Minotauro,
ela é sequestrada e levada pela criatura mitológica para que demonstre seus
dotes culinários, no desenlace da história Tia Nastácia doma o minotauro com
seus bolinhos. Lobato busca relacionar sua personagem com o saber de negra
cozinheira, este espaço restrito apenas a cozinha se torna um emblema de seu
confinamento e de sua desqualificação social. (LAJOLO, 1998)
Lajolo
(1998) publicou um artigo que discute sobre A figura do negro em Monteiro
Lobato em suas obras, na obra Histórias
de Tia Nastácia a cozinheira ganha o papel de contadora de histórias, papel
até então exercido por Dona Benta, e leva para as crianças o conhecimento que
possui sobre o folclore brasileiro. Pedrinho logo se empolga com o significado
de folclore e diz:
— Uma ideia
que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando, de um
para outro, ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para
tirar o leite do folclore que há nela. [...]
— As negras velhas — disse Pedrinho — são
sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de
histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi escrava de meu avô. Todas
as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem
sabe se tia Nastácia não é uma segunda tia Esméria? (p. 05-06).
Fonte: Lobato,
Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. Versão Digital
De acordo com Penteado (2011) as
características de Tia Nastácia tiveram uma pretensão por parte de Lobato, no
trecho descrito acima a posição que ele insere sua personagem negra é de contadora
de histórias, papel desempenhado nas obras anteriores e posteriores a Dona
Benta. Tia Nastácia é conhecedora do folclore brasileiro, então a informação
sobre as histórias brasileiras deveria ser repassada pela personagem que é a
voz do povo. Seus ouvintes serão os mesmo de Dona Benta, as crianças aprendizes
de histórias por meio de uma mentora, Pedrinho, Emília e Narizinho.
Lajolo
(1998) argumenta e destaca outros trechos de Histórias de Tia Nastácia em seu artigo relacionado à figura do
negro nas obras de Monteiro, discute sobre os comentários da boneca Emília que
formam estereótipos, que segundo Bernd (1988) é uma generalização estabelecida
que se mantenha vinculada a respeito de um indivíduo. A linguagem da boneca
também é racista, pois ela sente-se superior a Tia Nastácia e a ofende
proferindo palavras ofensivas e preconceituosas, pois ela nega as histórias
contadas pela negra cozinheira. De acordo com Chochík (2008) o preconceito
também está relacionado ao comportamento agressivo com outro que seja sensível,
conduta presente nas falas de Emília:
—
Pois cá comigo — disse Emília — só aturo essas histórias como estudos da
ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. […] — coisa mesmo de negra
beiçuda, como tia Nastácia. Não gosto, não gosto e não gosto... [...] (p. 24).
— Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor
filosofia, esta diaba. [...] (p. 88)
Fonte: Monteiro
Lobato, Edição Centenário
O termo ao qual Emília se refere à Tia
Nastácia cria um estereótipo na personagem, sendo este racista, pois a
discriminação está relacionada à aparência física da negra, vinculando também
ao preconceito racial, fato social do Brasil por volta dos anos de 1930, e se
desenvolve com as ideias a respeito da superioridade de um indivíduo em relação
ao outro. As características físicas da negra são estereotipadas pela boneca,
ao qual se refere a cozinheira como preta
e beiçuda.
A linguagem com palavras ofensivas de Emília
as histórias contadas por Tia Nastácia segundo Lajolo (1998) consiste no fato
de que a narradora é negra e analfabeta, repassa somente aquilo que sabe por
ouvir seus antepassados contarem, não tendo valor no conhecimento cultural dos
ouvintes, os quais acham bobagens de
negra velha.
De acordo com Lajolo (1998, p. 04) os
xingamentos, através da boneca Emília, demonstram que a negra cozinheira, por
mais que mude sua posição na história e passe a ser narradora, não receberá a
mesma consideração social e valorativa de sua narrativa, pois seu conhecimento
vem do povo e não da cultura escrita, como é munida Dona Benta. Desta forma Tia
Nastácia permanece como inferior em relação aos seus ouvintes, discriminada
devido sua condição social. Outro ponto analisado por Lajolo (1998, p. 03) na
questão dos xingamentos discriminatórios de Emília é de que Lobato escreveu sua
narrativa com traços de linguagem verossímeis ao uso coloquial da sociedade
brasileira de 1930, com isso surgem ambiguidades em relação ao racismo ou não
de Lobato, pois na linguagem de alguns personagens o escritor valoriza o
conhecimento da negra: — As negras velhas
— disse Pedrinho — são sempre muito sabidas. (p. 05-06)
A
inferioridade social, segundo Lajolo (1998, p. 06) se destaca também através de
Dona Benta, ela de certo modo desvaloriza a narrativa de sua doméstica, afirma
que a história de Tia Nastácia, a que o povo passa de geração para geração,
sofre alterações conforme cada um vai contando, sempre há mudança na oratória. A
posição da negra como a oradora de histórias não contribui a nenhuma elevação
cultural de seus ouvintes, pois não relata fatos da literatura moderna infantil
como Peter Pan e D. Quixote contados
por Dona Benta. O seguinte trecho relata a opinião de Dona Benta:
— Você tem razão, Emília — disse dona Benta.
— As histórias que andam na boca do povo não são como as escritas. As histórias
escritas conservam-se sempre as mesmas, porque a escrita fixa a maneira pela
qual o autor a compôs. Mas as histórias que correm na boca do povo vão se
adulterando com o tempo. Cada pessoa que conta muda uma coisa ou outra, e por
fim elas ficam muito diferentes do que eram no começo. [...]
— Sim, aumenta um ponto e introduz qualquer
modificação. Ninguém que ouça uma história é capaz de contá-la para diante sem
alteração de alguma coisa, de modo que no fim a história aparece horrivelmente
modificada. [...] (p.
18).
Emília representa no contexto da narrativa o
sistema totalitário, pois ela nega a liberdade de ação das histórias contada
pela negra, à ideologia da boneca representada por sua linguagem rejeita e não
aceita a cultura da cozinheira, ela diz “[...]
só aturo essas histórias como estudo de ignorância do povo. Prazer não sinto
nenhum [...], desta forma a boneca isola a personagem Tia Nastácia devido o
conhecimento que possui, e ainda discrimina com a fala [...] coisa mesmo de negra beiçuda [...] direcionando essa
característica para o estereótipo, que generaliza o conhecimento a negra beiçuda
Logo
Dona Benta também assume o papel de mentora dominante justificando a origem dos
contos da negra, pois seu conhecimento provém de livros, o que é provado em
escrita tudo o que diz, dando veracidade nos fatos de sua história, dando total
liberdade de desvalorizar a função atual da negra, “o totalitarismo silencia a
voz da experiência, substituindo-a pelo discurso único e absoluto do poder” (CROCHÍK, 2008, p. 38), fazendo com que ela seja inferior a sua
patroa Dona Benta. Sendo assim a negra cozinheira e a avó sábia não se igualam
em relação ao conhecimento e atribuições. (LAJOLO, 1998, p. 06)
No
trecho a seguir, Dona Benta justifica o motivo pelo qual as histórias de Tia
Nastácia são tão distorcidas e tão diferentes das que ela conta:
— Sim —
disse Dona Benta. — Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos
grandes escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como
Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem
senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las
para outros ouvidos, mais adulteradas ainda.[...] (p. 23)
O
papel de mentora atribuído a Tia Nastácia é de relatar os seus conhecimentos em
relação a histórias que o povo conta, traz para as crianças do sítio sua
herança africana, sua cultura. As desvalorizações de seus conhecimentos estão relacionadas
ao fato dos contos não terem origem Europeia, assim como as de Dona Benta
descendente de europeus e de raça branca que são originadas de livros, seus
serões são de conhecimentos do povo, repassados de geração para geração.
Seguindo
as explicações abordadas por Crochík (org. 2008) os ouvintes de Tia Nastácia são
como totalitaristas, pois corrompe a liberdade da fantasia das histórias
contadas pela negra, fazendo críticas sobre a origem da narrativa, nega a
manifestação da cultura do povo. Surge a partir dos julgamentos destes ouvintes
o racismo, pois Tia Nastácia é atingida pela violência totalitária, menospreza
o conteúdo de seus serões por ter origem apenas da oralidade, e eleva o valor
das histórias contadas por Dona Benta que provem de livros.
Lobato
abordou em sua obra infantil uma realidade aproximada, a verossimilhança da
realidade que o negro passava na época do Brasil pós-escravidão, fato que
decorreu durante os anos 30. De acordo com os textos de Lajolo, que argumenta
sobre a questão de racismo do autor do Sítio do Picapau Amarelo, explicita os
pontos destacados como preconceituoso, ele demonstra que o branco sempre teve
razão e é superior ao negro, mesmo que esse negro assuma o lugar de informante
de conhecimento que irá aumentar a cultura dos ouvintes, sendo evidente que
havia superioridade mesmo após o fim da escravidão e libertação de todos os
negros, ele assim mesmo seria inferior ao branco. Em alguns momentos pode-se
encontrar ambiguidade se há preconceito ou não, mas a realidade de sua obra ficcional
é latente que a escravidão deixou resquícios entre raças.
Essas
diferenças são representadas na plateia de Tia Nastácia, ao narrar suas
histórias os ouvintes se recusam a acreditarem nelas, e a justificativa é de
que as histórias de Dona Benta são mais intrigantes e possuem aventuras,
características que prende a atenção das crianças. Constatando que os dotes de
Tia Nastácia não estão direcionados a narrar histórias de aculturamento para
seu público e sim na cozinha como afirma Lajolo (1998, p. 5):
Mas como Tia Nastácia não é dona Benta, a situação de
oralidade que ela protagoniza não aponta para além de si mesma e, sobretudo,
não contribui para elevação cultura de seus ouvintes, já que nem os
familiarizam com a moderna literatura infantil como Peter Pan e tampouco os
aproxima de clássicos como D. Quixote; muito pelo contrário, constitui um
rebaixamento cultural, já que é arcaico o mundo que se faz presente em suas
histórias.
Mesmo
que Tia Nastácia exerça a função de Dona Benta, sua narrativa não terá tanta
ênfase na ampliação do conhecimento de seus ouvintes, os quais estão
acostumados com as histórias infantis lidos e narrados pela avó, demonstra o
valor entre uma cultura que repassa o conhecimento através da oralidade e outra
que tem por embasamentos escritos aprimorados da história do povo.
Da
forma que o personagem negro foi abordado nesta narrativa de Lobato a pretensão
é intencional, pois ele demonstra o valor que é cedido aos negros brasileiros
da época em que vivia e o lugar estereotipado a eles, a negação do
totalitarismo que menospreza a mudança de posição desta personagem negra ao
desenvolver o ato de contar histórias adquiridas pela oralidade, à discriminação
ao trabalho doméstico relacionado ao prestador de serviços aos brancos, e a
inferioridade da negra em relação aos demais habitantes do Sítio.
Fonte:
SANTOS, Yndianara da Silva. Estereótipo racista na obra de Monteiro Lobato? Histórias de Tia Nastácia. Brasília, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário